XVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE POESIA

terça-feira, 12 de março de 2013

A lira de Antonio Cicero


O poeta, filósofo e candidato à ABL fala sobre a canção popular brasileira e suas parcerias como letrista


Antonio Cicero (Foto: Eucanaã Ferraz/Divulgação)
MARCUS PRETO
Por meio de versos compostos para melodias de, entre outros, Marina Lima, Adriana Calcanhotto, João Bosco, Orlando Moraes e Lulu Santos, o poeta e filósofo Antonio Cicero acabou por se tornar um dos maiores letristas da música popular brasileira. Sua produção nessa seara começou na segunda metade dos anos 1970, quando Marina, sua irmã, musicou poema “Canção da alma caiada”.
Mergulhado no universo acadêmico, Cicero teve sua produção musical refreada nos últimos anos. A obra poética e filosófica, no entanto, segue em crescente desenvolvimento. No ano passado, lançou dois livros: Porventura (Record) traz sua safra recente de poemas; Filosofia e poesia (Civilização Brasileira) enfeixa uma série de ensaios que analisa as relações entre os dois gêneros. Candidato à Academia Brasileira de Letras, já tem outro livro pronto: As musas e a razão, a sair em julho pela Companhia das Letras.
CULT – Acha que ser um letrista – e um letrista de sucesso – fez de você um poeta diferente do que seria caso só tivesse publicado livros?
Antonio Cicero – Acho que sim. Isso me fez ouvir letras e letristas extraordinários, que eu talvez não tivesse conhecido se não me tivesse tornado também um letrista. E isso me permitiu conhecer muitos tipos – tipos extraordinários – de pessoas e de artistas que eu não teria conhecido caso houvesse ficado restrito ao campo erudito. Mas essa transformação começou a se dar mesmo antes de eu me tornar letrista, quando, exilado, vivi em Londres na mesma época de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Péricles Cavalcanti e Jorge Mautner, por exemplo. Foi, em primeiro lugar, através de longas conversas com Caetano que, deixando de lado o desprezo pela “indústria cultural” que me havia sido incutido pela leitura dos filósofos da Escola de Frankfurt, como Adorno, compreendi bem, por exemplo, que a qualidade estética de uma obra de arte não tem nada a ver com o fato de sua origem ser erudita, popular ou pop.
O poema “Canção da alma caiada” acabou, acidentalmente, por se tornar sua primeira incursão no universo da canção. É fato que Marina o musicou sem que você soubesse?
Sim. Marina e eu havíamos, na época, voltado a morar em Washington com nossos pais (meu pai trabalhava no BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento). Marina tocava violão. Eu saía cedo para ir à Universidade de Georgetown, onde cursava o mestrado em filosofia. Um dia, ao voltar para casa, ela havia musicado o poema “Alma caiada”, que eu escrevera e guardara numa gaveta. Inicialmente, fiquei irritado, pois não gosto de ter minhas gavetas vasculhadas, mas depois percebi que a canção era muito bonita. E a partir disso comecei a escrever letras para as melodias que ela compunha.
A mesma Marina me contou que, quando envia melodia para que os parceiros coloquem letra, já manda na gravação algumas palavras que ela gostaria que fossem mantidas. Ela faz assim contigo também?
Comigo, que sou irmão, ela tem intimidade para, às vezes, mudar uma palavra ou outra que eu tenha escrito. Por exemplo, quando nosso pai morreu, resolvemos homenageá-lo. Fiz então, para uma melodia da Marina, uma letra chamada “Eu vi o rei passar”. Com isso, eu me referia à vida e à morte dele. Marina, porém, talvez porque não quisesse se referir à morte, preferiu cantar: “Eu vi o rei chegar”. Mas no livro Guardar eu mantive “Eu vi o rei passar”. Já em “O charme do mundo”, eu escrevi assim: “Acho que o mundo / faz charme / e que ele sabe / como encantar-me”. Naturalmente, “encantar-me” rima com “charme”. Mas Marina achou – com certa razão – que isso afastaria demais a canção do modo de falar normal do brasileiro. Mesmo perdendo a rima, preferiu cantar simplesmente: “Acho que o mundo / faz charme / e que ele sabe / como encantar”.
Marina passou por uma transformação vocal a partir de meados dos anos 1990 que, por sua vez, transformou um tanto da personalidade artística dela própria, a maneira de compor e de se relacionar com a música. Como você participou dessa transformação?
Desde sempre, quando compomos, ficamos muito próximos. Às vezes vou fazendo a letra à medida que ela faz a música. Isso continuou sendo assim, mesmo depois da transformação vocal, quando compusemos a canção “Três”, por exemplo. O que mudou foi que temos composto menos.
Conhecendo um pouco de sua personalidade, imagino que seu trabalho como letrista seja quase sempre solitário, silencioso, concentrado. Mas você compôs os versos de um disco inteiro – Zona de fronteira (1991), de João Bosco – a quatro mãos com o nada silencioso Waly Salomão. Como foi essa experiência?
Normalmente, meu trabalho é realmente solitário. Mas Waly foi um dos maiores amigos que já tive. Nossa intimidade era muito grande. E ele tinha um senso de humor extraordinário. O trabalho era feito do seguinte modo: nós nos encontrávamos na casa do João, que nos mostrava a melodia e a gravava numa fita. Nós todos comentávamos as sugestões da melodia, e conversávamos sobre outros assuntos. Depois íamos embora e, no dia seguinte, eu e Waly nos encontrávamos para tentar compor a letra. Eu escrevia tudo o que nós dois propúnhamos – muita loucura – num caderno. Depois, começávamos a peneira o que estava ali. Finalmente, eu, que tinha prática disso, encaixava o resultado na melodia. O resultado sofria várias revisões até ficar pronto.
Há outras histórias sensacionais de sua relação com Waly, como a “corrida” para ver quem terminava antes uma canção encomendada por Maria Bethânia.
Maria Bethânia encomendou, para um disco dela, uma letra a Waly e uma a mim. Minha parceira era a Marina e o de Waly, Caetano. Rolou então uma espécie de competição amigável. Todo dia nos falávamos. Waly perguntava: “E aí? Conseguiu fazer a letra?”. E eu respondia: “Ainda não, e você?”. E ele: “Também não”. Acontece que Waly trabalhava de modo oposto ao meu: enquanto eu punha letra numa melodia que me enviassem, ele fazia primeiro a letra e seu parceiro a musicava. Pois bem, enquanto Waly esperava por inspiração para escrever sua letra, Marina logo me deu uma melodia que já funcionou como inspiração. Assim, terminei minha letra. Quando Waly ligou, perguntando se eu havia conseguido fazer a letra e respondi que sim, percebi pelo seu tom de voz, ao dizer “ah, é?”, que ele tinha ficado meio irritado. “Como se chama?”, perguntou. Respondi: “‘O lado quente do ser’”. “Hum”, replicou ele. “E como é?” Eu disse: “Começa com o verso ‘Eu gosto de ser mulher’”. Ao que ele, imediatamente, reagiu: “Mas é autobiográfica?”.
Outro dia, li um texto em que você dizia que “a arte não tem nada a ver com nenhuma ‘busca do novo’”. Música é arte. Mesmo essa não tem a ver com nenhuma “busca do novo”?
Penso que não. A ideia de “buscar o novo” é uma abstração. “Buscar o novo” será buscar o que ainda não existe ou buscar o que acaba de surgir? Se for buscar o que ainda não existe, é uma busca absurda, pois o que não existe não pode ser buscado. Já a ideia de que “buscar o novo” seja buscar o recém-surgido supõe que o artista seja uma espécie de “antena”, uma “antena da raça”, como dizia Ezra Pound. Isso me parece um equívoco, pois a verdade é que captar e retransmitir o novo não são as funções legítimas dos poetas e artistas, mas sim dos jornalistas. A arte não parte de abstrações desse tipo, mas de desejos, vontades, ímpetos, intuições, experiências, experimentações concretas. É com a mão na massa, e não com a ideia de “buscar o novo”, que vai surgindo a obra de arte. E, a partir do momento em que vai surgindo, ela vai tendo suas próprias exigências.
É claro que uma obra que se produz desse modo, a partir do embate individual e concreto do artista com a sua matéria, jamais é a mera reiteração do que já exista. Não é o grau de “novidade” de tal obra que dá o seu valor: do contrário, ela perderia o valor à medida que o tempo passa. O mais importante, dizia Isócrates, na Grécia Antiga, não é ser o primeiro, mas o melhor. Mas a verdade é que o próprio Pound, que eu critiquei acima, sabe disso, pois, em outra obra, ele afirma que a literatura é “news that stays news”: “novas que permanecem novas”; novidades que permanecem novidades. Ora, o novo que permanece novo não é simplesmente “o novo”, mas aquilo que não envelhece. “Um clássico é um clássico”, afirma, novamente com razão, o velho Pound, “porque possui um certo eterno e irreprimível frescor”.
O que Caetano Veloso tem feito desde 2006, quando começou a gravar discos com a Banda Cê, me parece, em muitos aspectos, uma “busca do novo”. Para você não soam assim?
Essa evolução da música de Caetano parece-me ser resultado de muita experiência concreta e recente a que ele admiravelmente é capaz de se abrir, mas não de uma abstrata “busca do novo”. A convivência de Caetano com seus filhos, tanto Moreno quanto os adolescentes Tom e Zeca, as leituras, reflexões e conversas dele com muita gente, inclusive com os músicos que com ele trabalham, a atenção que ele presta ao cenário musical, artístico e literário brasileiro e mundial: tudo isso e muito mais afeta de maneira extraordinária o artista genial que ele é.
Caetano é capaz de renovar sua música, mesmo que não esteja “buscando o novo”. É isso?
O que Caetano diz é que, de certa maneira, ele permanece um eterno adolescente. Isso significa que ele ainda se deixa afetar profundamente por muitas das coisas que lhe ocorrem: que ainda se espanta, que ainda se admira com coisas e acontecimentos com os quais a maior parte das pessoas da idade dele já não se admira ou espanta tanto. Repito: trata-se de algo muito concreto, e não de uma abstrata “busca do novo”. Como Picasso, Caetano não “busca o novo”, mas o produz.
Já Chico Buarque continua a compor e a gravar da mesma forma que o consagrou. Alguns de seus músicos e seu arranjador estão com ele desde os anos 1980. Isso faz de Chico um artista diferente de Caetano. Como você avalia essa diferença?
Os grandes artistas criam de modos muito diferentes. Assim, por exemplo, Drummond experimentou diferentes estilos o tempo todo, mudando de livro para livro. Já João Cabral manteve o seu estilo, desde relativamente jovem até a velhice. Isso não significa que a obra de Cabral não mudasse: mas as mudanças não eram tão evidentes. A comparação entre Drummond e Cabral vale, de certo modo, para a comparação entre Caetano e Chico. Um poema de seu novo livro diz: “Só o desejo não passa / E só deseja o que passa / E passo meu tempo inteiro / Enfrentando um só problema: / Ao menos no meu poema / Agarrar o passageiro”.
A função principal da arte – da poesia, da música e das letras das canções – é transformar a impotência do artista em potência?
Na verdade, não creio que se possa realmente determinar a função principal da arte ou o motivo principal do trabalho do artista. Mas talvez uma de suas funções seja, de fato, transformar a impotência – ou a sensação de impotência – do ser humano em sensação de potência. Veja bem: numa tragédia, isto é, na poesia trágica, o herói trágico sabe desde o princípio que seu destino será sofrer muito e morrer. Longe de fugir desse destino, ele o enfrenta e cumpre. E não lamentamos o destino do herói trágico. Antes, nos identificamos com ele e o admiramos.
Na poesia lírica é diferente. Um velho motivo da poesia lírica é a recusatio, através do qual o poeta lírico se desculpava por se recusar a tratar de temas trágicos na sua poesia. Uma famosa recusatio é a de Anacreonte, que diz (a tradução é minha): “Quero falar dos atridas / e também cantar a Cadmo / porém as cordas da lira /ecoam só o amor. // Mudei as cordas há pouco / mudei a lira todinha / e também cantei os feitos / herácleos; porém a lira / só acompanha os amores. // Digamos adeus em paz, / heróis: o fato é que a lira / canta amores, nada mais”.
O poeta lírico canta, frequentemente, a própria vida cotidiana, com seus amores, mas também seus dissabores e sofrimentos, aparentemente nada trágicos. No entanto, parece-me que ele tem algo em comum com os poetas trágicos. Um poema lírico não deixa de ser um monumento a um fragmento da vida cotidiana. Quando se trata de um poema de verdade, ele consiste num texto cuja leitura recompensa a si própria, num objeto que vale por si, independentemente de qualquer utilidade ulterior. Sendo assim, ele confere certa distinção, certa necessidade a algum efêmero fragmento da vida.

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